TÍTULO: Kind of Blue: a história da obra-prima de Miles Davis
TÍTULO ORIGINAL: Kind of Blue - The making of the Miles Davis Masterpiece
AUTOR: Ashley Kahn
TRADUÇÃO: Patrícia de Cia e Marcelo Orozco
LANÇAMENTO: 2000(EUA), 2007(Brasil)
EDITORA: Barracuda

SINOPSE:  'Kind of blue - A história da obra-prima de Miles Davis' é um relato da gravação de um dos maiores álbuns de jazz da história. Em 1959, Miles Davis reuniu seu famoso sexteto - John Coltrane, Cannonball Adderley, Bill Evans, Wynton Kelly, Paul Chambers e Jimmy Cobb - no 30th Street Studio, em Nova York, e, em apenas duas sessões de improviso, criou uma obra-prima. 'Kind of blue' é uma referência para músicos, entusiastas e neófitos. Suas impressionantes vendas confirmam sua longevidade e sua importância ainda causa impacto na música. Neste olhar cuidadoso sobra a história do álbum, o jornalista americano Ashley Kahn traça um panorama do jazz nos anos 50 e recria o cenário dessa monumental gravação. O livro começa com a emocionante chegada do autor aos estúdios da Sony Music, que detém os arquivos de 'Kind of blue', e transmite toda a ansiedade e excitação que o raro acesso aos originais do álbum causam. Em seguida, relata a chegada de Miles Davis a Nova York e repassa sua trajetória até se debruçar sobre as duas famosas sessões de gravação. Desse ponto em diante, o foco se alarga novamente para mostrar sua repercussão e influência. Com transcrições de trechos não-editados das fitas master, entrevistas, arquivos da Columbia Records recém-descobertos, cerca de cem imagens (incluindo fotografias inéditas, partituras e registros do estúdio), entrevistas e o prefácio do único membro sobrevivente da banda, Jimmy Cobb, 'Kind of blue' é um tributo a um importante episódio da história da música.
Ashley Kahn é jornalista de música, produtor de rádio, professor e autor de 'A Love Supreme: The Story of John Coltrane's Signature Album' e 'The House That Trane Built: The Story of Impulse Records'. Foi editor de música na VH1, editor principal da 'Rolling Stone: The Seventies' e um dos principais colaboradores da Rolling Stone Jazz & Blues Álbum Guide. Escreveu artigos para o New York Times, Rolling Stone e Mojo.
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O Estado de S. Paulo  /   Data: 25/3/2007
A primeira faísca do jazz moderno

Kind of Blue , de Ashley Kahn, leva o nome do disco vital na história do gênero João Marcos Coelho Os aprendizes clássicos de pianistas passam obrigatoriamente por alguns dos 48 prelúdios e fugas do Cravo bem Temperado de Bach e também por cinco ou seis sonatas de Beethoven. Já os músicos de jazz dos últimos 49 anos não podem dispensar Kind of Blue , a Bíblia do jazz moderno, registrada em 1959 por um septeto liderado pelo trompetista Miles Davis. É provavelmente a mais celebrada gravação da história do jazz. Há sete anos foi objeto de minuciosa e suculenta biografia do dublê de jornalista e pesquisador americano Ashley Kahn . E agora ganha uma edição em português (Barracuda, 256 págs.). Kind of Blue superou a marca dos 5 milhões de cópias vendidas. Assegura, portanto, o título de disco de jazz mais vendido de todos os tempos. E deve seu nome a um verdadeiro manifesto de Davis. Segundo Kahn, ele usava a expressão 'kind of blue', que funcionava em dois níveis: a música - especialmente Freddie Freeloader e All Blues - era estruturalmente baseada em uma forma 'um pouco' blues, enquanto o resto do álbum insinuava um sentimento de melancolia que era verdadeiramente 'um pouco blue'. Além disso, o disco realiza o milagre de conter música ao mesmo tempo acessível e inovadora. Kind of Blue, também o nome do livro de Ashley Kahn, recheado de fotos magníficas, é quase tão primoroso como o disco. Esmiúça as duas sessões de gravação, realizadas em 2 de março e 22 de abril, no 30th Street Studio, em NY. E oferece ao leitor oportunidade para entender o jazz moderno. 'Ao focar numa gravação, discuti a cena jazzística dos anos 50; a evolução do jazz, do bebop ao cool, ao hardbop e ao jazz modal; a questão racial naquele momento e como ela afetou a música e os músicos; a tecnologia de gravação em estúdio; as gravadoras, etc., etc. Kind of Blue era uma janela perfeita para tudo isso.' Um dos maiores achados de Kahn é um desses detalhes esquecidos que acaba sendo capital para a compreensão do disco. Ao pesquisar na biblioteca da Universidade de Yale, Kahn descobriu cinco fotos nunca publicadas da segunda sessão. 'Entre elas estava a da estante do sax-alto Cannonball Adderley, com seus cigarros, seu remédio, sua palheta e, claro, a música que Bill Evans escreveu para Flamenco Sketches. O mais interessante e revelador é a anotação 'play in the sound of the scale'. Ele não escreveu 'tocar exatamente a escala', mas tocar no 'feeling' do modo. Esta é uma ótima definição de jazz modal', diz ao Estado. Esta foto sintetiza a revolução estrutural que Kind of Blue provocou no jazz moderno. A forma-padrão dos improvisos no jazz é a das variações sobre temas. A harmonia era a bússola do improvisador. Os improvisos ocorriam sobre a seqüência harmônica. Pois o papel pautado meio amarrotado que está na estante de Cannonball Adderley mostra cinco escalas diferentes. Ali nascia o jazz modal, ou seja, o improviso passava a ser feito sobre uma escala. Miles Davis estudou um ano na Juilliard School, onde conheceu partituras de Alban Berg, Stravinski e sobretudo Ravel. Foi a sólida formação clássica de Bill Evans que o fascinou e o fez chamá-lo para o grupo. 'Foi a relação entre eles que criou a faísca da qual resultou Kind of Blue', diz Kahn. Na primeira sessão, Wynton Kelly, o pianista do grupo, foi até o estúdio e topou com Evans. Davis lhe deu a chance de participar da primeira faixa, Freddie Freeloader. Nas demais, Evans reina absoluto. O grupo, que incluía o sax-tenor John Coltrane, o sax-alto Cannonball Adderley, o contrabaixista Paul Chambers e o baterista Jimmy Cobb, existiu de maio de 1958 até a gravação. Não por acaso, Bill Evans assina o texto do encarte do LP. Mas Kind of Blue também é o trompete inigualável de Miles Davis. Em seu solo em So What, ele combina simplicidade, um exagero de economia, contornando sons prolongados e silêncios para obter um efeito irresistivelmente casual e um palpável senso dramático. Acrescente-se a tendência de adiantar o ritmo e jogar com as divisões. Blue in Green, a última música gravada na primeira sessão, é uma forma circular de dez compassos, um moto perpétuo que Davis curtia muito: 'Você pode dizer onde a música começa, mas não onde acaba... adoro esse suspense. Não apenas soa bem - é imprevisível.' A segunda sessão, de 22 de março, incluiu a citada Flamenko Sketches e All Blues. Só perceberam em 1992, mas houve um defeito no gravador da segunda sessão e a velocidade ficou inferior: ao ser reproduzida, a fita provocava elevação de quase meio tom. Só no relançamento de 1992 corrigiu-se isso, usando-se a cópia de segurança. Por que todos os temas são inéditos? Ora, porque o novo sistema exigia novos standards... e novos tipos de improviso. O solo de Evans em All Blues é estelar e inovador: 'Ele percorre uma trajetória modal', escreve Kahn. Evans fica só nas teclas brancas, maneira simples e direta de evocar influências eruditas: 'Evans costumava me trazer obras de Ravel. Estávamos indo nessa direção, como Ravel, fazendo som apenas com as teclas brancas', comenta Miles Davis em sua autobiografia. Tudo isso causou estranheza na crítica especializada e nos músicos de jazz, mas não no público, que adorou. O crítico da revista Down Beat escreveu: 'Espanta que eles tenham feito tanto com material tão esquálido e elementar.' O contrabaixista Ron Carter sentiu-se um imbecil. 'O que é isso? Podia sentir os acordes mas não sabia o que eles estavam fazendo. Levou algum tempo até eu começar a compreender que eles não estavam tocando sobre harmonia, como nós as conhecíamos, mas em cima de uma forma baseada em escalas. Eu me dei conta de como estava defasado.' Miles seguiu em frente, sem olhar para trás. Tinha sangue de revolucionário. Uma vez, em 1986, perguntaram-lhe sobre o jazz modal: 'Está mais para peru requentado.' É no mínimo curioso que a outra personalidade dominante em Kind of Blue, o pianista Bill Evans fosse adepto das revoluções silenciosas, sub-reptícias. Costumava queixar-se de que 'fazer da vanguarda o único critério acabou virando quase uma doença, especialmente no jazz'. Propunha, com simplicidade, que pensemos em 'quem está fazendo a música mais bonita, mais humana', pois, conclui, 'a mais bonita pode muito bem ser a mais moderna também'. Que o diga Kind of Blue.