Miles Davis no North Sea Jazz Festival, em Curaçao, em 1991


"Um ano depois que eu nasci, um furacão passou por St. Louis. Talvez ele tenha deixado um pouco de sua criatividade indomável em mim, um pouco da força de seu vento", escreveu Miles Dewey Davis III em sua autobiografia de 1989. O raciocínio supersticioso é o modo mais simples de descrever a força criativa de um trompetista que, durante 40 anos, passou diversas vezes como um Katrina pelo status quo do jazz, redefinindo conceitos de ritmo, harmonia, sonoridade e interação na música, além de deixar em seu rastro uma aura indecifrável, tão misteriosa quanto elegante.

Todas as fases do homem, do bebop ao fusion, formam a exposição "Queremos Miles", concebida pelo instituto musical Cité de la Musique, em Paris, com data de estreia marcada para o início de agosto no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, e outubro em São Paulo. Dividida em oito partes, que seguem a trajetória do trompetista desde sua infância, no Missouri, ao estrelato, "Queremos Miles" busca apresentar o trompetista para os leigos e ilustrá-lo para os fãs.

"Desde os anos 50, Miles tem uma base de fãs muito grande na França", explica o curador da exposição Vincent Bessières, que teve ajuda da família do músico para montar a mostra. "Mas o Cité de la Musique é um lugar didático, aberto para todos, não somente os fãs. Então me esforcei para que a pessoa que não conhecesse sua obra pudesse, em uma ou duas horas de exposição, ser iniciada", completa.

Seis das oito partes da mostra são feitas por casulos construídos na forma de uma surdina de trompete, que contém arquivos e música de todas as fases de Miles – entre elas, a fase inicial, quando, aos 18 anos, ele chegou em Nova York e se apresentou a Charlie Parker como seu novo colaborador, tendo a oportunidade de desenvolver sua música, no palco, ao lado de Bird e Dizzie Gillespie; o início do cool jazz, sua luta contra o vício em heroína e seu quinteto com o fabuloso Red Garland, nos anos 50; o icônico disco "Kind of Blue"; suas colaborações orquestrais com o arranjador Gil Evans; seu quinteto com Wayne Shorter; o parto do fusion, na fase "Bitches Brew" e o desenvolvimento do gênero nos anos 80.

"A música de Miles mudou bastante durante sua vida. Sua obra é um pouco como a de Picasso: ele não toca no final como tocava no início. Portanto, a exposição é estruturada de um modo em que o visitante possa ter a experiência audiovisual de todos esses períodos no local", conta Bessières.

A exposição tem o foco tanto na música quanto na memorabilia de Miles. Estarão presentes sete de seus trompetes, diversos documentos de sessões em gravadoras, e instrumentos como o sax que John Coltrane tocou em "Kind of Blue", o baixo em que Marcus Miller gravou "Tutu", as baterias de Tony Williams e Al Foster. Um acervo de fotos com todos os belíssimos registros da gravação de "Kind of Blue" também faz parte da exposição. Para agradar os fãs assíduos, Bessières conseguiu partituras, diversos arranjos de Gil Evans, o flugelhorn em que Miles tocou "Sketches of Spain".

A fase inicial traz pinturas de Jean Michel Basquiat, de quem Miles foi amigo nos anos 80. A mostra também traz quadros de Miles, que se aventurou pela pintura no período, entre os anos 70 e 80, em que ficou sem tocar e gravar, assim com algumas das próprias capas ilustradas pelo músico. E ainda a moda de Miles estará presente com algumas de suas jaquetas mais memoráveis.

Roberto Nascimento

Agência Estado, São Paulo