São poucos os artistas que transformaram seus discos em fotos instantâneas de uma época, sejam por retratarem um estado pessoal e, porque não dizer, espiritual, político e social, tudo dentro de um contexto igualmente determinado. Quem você consegue lembrar que possa ser incluído neste grupo especial? Bob Dylan? David Bowie? Bruce Springsteen?
Sim, estes e alguns poucos caras souberam como ninguém oferecer “polaroides” - quem é velhinho(a) como eu jamais vai esquecer das lendárias fotos – que, de certa forma, ofereciam uma luz um pouco mais precisa a respeito de suas respectivas personalidade e de como lidavam com o meio em que viviam.
Ah, pode incluir outro nome nesta seleta lista: Eric Clapton.
Fiquei pensando a respeito disto por conta do relançamento luxuoso de um de seus álbuns mais emblemáticos, o quinto disco de sua carreira solo pós-Cream.
Slowhand – título que se refere ao apelido que o produtor e empresário Giorgio Gomelsky havia dado a Clapton por conta da lenta e precisa destreza de sua mão esquerda na hora de solar – é daqueles trabalhos que transcendem seu próprio tempo e revelam nas entrelinhas como andava a cabeça e o espírito do guitarrista que um dia foi chamado de “Deus” em pichações nos muros de Londres.
O próprio período em que o álbum foi lançado (1977) contribuiu para que Clapton fizesse tudo com calma e alegria, artigos raros em sua vida nos anos anteriores. O disco reflete alguns detalhes extramusicais que influíram em seu acabamento final. Clapton já tinha Patti Boyd – a ex-mulher de George Harrison e musa inspiradora para o surgimento de “Layla” – como sua namorada oficial. Sua segurança emocional tinha como “bônus” o fato de sua banda de apoio ser formada por músicos americanos já tarimbados, como o baixista Carl Radle, que tocava com Clapton desde os tempos de Derek & The Dominos, e o baterista Jamie Oldaker e o tecladista Dick Sims, ambos da banda do cantor americano Bob Seger.
Grande parte do charme das canções de Slowhand está justamente na qualidade da gravação feita no lendário Olympic Studios, o mesmo local onde o Led Zeppelin gravou o seu inacreditável disco de estreia e os Rolling Stones fizeram dois álbuns seminais, Beggars Banquet e Let It Bleed. Isto sem contar na estupenda produção de Glyn Johns, um dos mais requisitados profissionais durante os anos 70 – para você ter uma ideia da importância do cara, foi ele quem produziu My Generation e Who’s Next, do The Who.
Ao contrário do disco anterior, No Reason to Cry, Clapton e sua equipe levaram muito pouco tempo para gravar e mixar Slowhand - seis semanas, para ser mais exato. O fato de o guitarrista ter optado por utilizar a banda que até então estava ao seu lado na turnê daquela época foi outro ponto determinante para o ótimo resultado final.
Só que quando você ouve o disco novamente, agora em edição totalmente remasterizada, “no capricho”, e no contexto dos dias de hoje, fica muito claro porque as três primeiras canções - “Cocaine”, “Wonderful Tonight” e “Lay Down Sally” – se transformaram em hits instantâneos, a ponto de permanecerem onipresentes nas programações das rádios de todo o planeta.
A tranquilidade que Clapton desfrutava na época o levou a mesclar o repertório do disco com canções de sua própria lavra e composições de outros caras que admirava. Este é precisamente o caso de “Cocaine”, a mais famosa canção que Clapton não compôs – ela é de autoria do lendário J.J. Cale.
É óbvio que o guitarrista adorava o trabalho do compositor americano, mas a inclusão da música no disco também se deveu a algo não tão engraçado: Clapton sempre julgou que o riff de “Cocaine” foi levemente surrupiado de “Sunshine of Your Love”, do Cream. Foi como se ele buscasse reaver algo que lhe foi roubado. Nem preciso dizer o quanto Cale ganhou com esta exposição, né?
Outro que saiu ganhando muito com Slowhand foi John Martyn, cantor e compositor folk inglês que teve uma de suas mais lindas canções, “May You Never”, resgatada por Clapton no disco. O mesmo aconteceu com o cantor country americano Don Williams e sua bela “We’re All the Way” e com obluesman Arthur “Big Boy” Cudrup – o cara eu compôs a lendária “That’s All Right”, eternizada por Elvis Presley – e a maravilhosa “Mean Old Frisco”.
Por outro lado, Clapton passou anos declarando seu espanto com o sucesso de “Wonderful Tonight”, uma linda balada composta enquanto o guitarrista esperava sua amada Patti se arrumar para irem a um jantar oferecido por Paul e Linda McCartney. Ele nem iria incluir a música no disco, mas foi convencido pela insistência de seus companheiros de banda e do próprio produtor, que ficaram maravilhados quando ele a mostrou pela primeira vez. O entusiasmo com a canção foi tamanho que ela foi a primeira a ser gravada, com o arranjo feito ali mesmo, na hora. Ficou pronta em inacreditáveis duas horas.
A sonoridade cristalina está ainda mais realçada na nova edição dupla, que vem com quatro músicas de estúdio como “bonus tracks” (incluindo uma linda versão de “Looking at the Rain”, do subestimado Gordon Lightfoot) e mais um disco inteiramente gravado ao vivo no Hammersmith Odeon, poucos dias antes de a banda entrar no estúdio para gravar Slowhand. Detalhes preciosíssimos, como o fato de Clapton e sua banda terem registrado o álbum inteiro praticamente “ao vivo” dentro da enorme sala do estúdio, ficam ainda mais evidentes para quem tem ouvidos mais calibrados do que a garotada acostumada aos “mp3 da vida”. Na ocasião, ninguém poderia errar. E só uma banda extremamente azeitada poderia realizar tal empreitada...
Este é mais um disco que tem que ser “ouvido como um álbum de fotografias”. Sei que é estranho ler isto, mas você vai entender quando terminar a audição...
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