Ribeiro Pedreira faz um apanhado geral na música conquistense
Por Ribeiro Pedreira
Há quem diga que a música eleva a alma. Talvez esta máxima se deva ao mito de Orfeu que herdou do seu pai, Apolo, uma lira da qual ecoava um canto divino, quando tocada por suas mãos. Um canto tão maravilhoso que nenhum ser vivente resistia à sua magia e acabava cedendo aos seus encantos. Até mesmo as mais indomáveis feras eram hipnotizadas pelas notas que saíam daquele instrumento sem par. 

Independentemente do que conta a mitologia, um fato incontestável é que a música é, das artes, a que se faz presente nas mais diversas situações e ambientes que se possa imaginar. Ela está num simples batuque que um exasperado executivo faz em sua mesa e num belo espetáculo de “bata de feijão”; no transe promovido pela tríade rum, pi e lé, quando da evocação dos orixás do Candomblé e da Umbanda e no toque do shofar, durante a prece de Mussaf numa sinagoga distante. A música está para incitar a guerra e para embalar o amor; para refletir e para dançar. A música está no mundo, desde sempre. Talvez esteja em Shangri-la, mas certamente está em Vitória da Conquista.


Não é possível falar de tantos artistas dessa terra em poucas linhas, mas dá para se ter uma noção a partir de uma pequena relação com alguns breves comentários. Para encabeçar a lista, nada mais justo que falar daquele que, em termos musicais, foi o primeiro a levar o nome da cidade a outras paragens distantes, inaugurando uma música erudita aliada às parlendas que delatam a dor, a lida, a ventura e os amores das gentes sertanejas. Elomar Figueira Mello, com suas antífonas, óperas, autos e cartas, é uma espécie rara de aedo. Um trovador de tamanha força poética que exerce relevante influência sobre outros grandes compositores não só da sua cidade, mas de todo Brasil, quiçá de outras nações. 


Assim como Orfeu herdou a lira de Apolo, João Omar herdou de Elomar, seu genitor, a verve musical. Excelente violonista, assim como o pai, estudou também violoncelo e tornou-se maestro regente e compositor. João Omar tem seu trabalho musical próprio que se diferencia do de Elomar, no entanto não perde de vista suas origens e, claro, é um dos melhores executores da obra de seu mestre primeiro, tendo participado desde muito jovem de alguns dos seus discos. 


É mesmo difícil selecionar artistas no meio dessa “catrupia”, mas também não há como usar esse termo tão comum no nordeste brasileiro que se traduz em turma, trupe etc., sem se lembrar de Alisson Menezes, outro absoluto compositor de timbre marcante e canções certeiras. Dono de uma musicalidade diversificada, Alisson sabe provocar sensações intensas através de suas letras atemporais e plenas de humanidades. Sabe levar o público para dentro do seu canto, da sua verdade. A Catrupia, grupo criado e liderado por ele, é, na verdade uma reunião de pessoas que se afinam nas cantigas de roda, bumba-meu-boi, coco, embolada e outros ritmos da cultura popular. Uma verdadeira escola de sonhos reais alimentados pela alegria. 


E por falar em cultura popular, o que dizer de Geslaney Brito? Cantor, compositor e poeta, é um (re)afirmador da identidade nordestina que ao lado da sua companheira e parceira de todas as horas, Iara Assessú, canta composições feitas por eles, carregadas de lirismo e bordadas com elementos rítmicos inerentes ao samba-de-roda, baião, maracatu e outras manifestações, entre cordas, tambores e sementes. Geslaney e Iara têm um jeito muito sério e singular de brincar de música com o compromisso de fazer arte pela arte. 


E quando ciência, arte, ideologia e música se entrelaçam, as suas iniciais formam a palavra CAIM. Não! Não é o famoso irmão de Abel que cometeu fratricídio movido pela inveja. Muito pelo contrário: trata-se de uma banda formada por dois amigos que se conheceram nesta cidade e se escolheram para irmãos. Marcus Marinho com suas influências do Metal e Achiles Neto da música nordestina vêm desenhando um trabalho brasileiríssimo e universal que vai do xote ao jazz, com nuances de samba e um tempero especialmente baiano.


Mas não só a música brasileira criou raízes em solo conquistense. O blues tem seu terreno garantido no sotaque tupiniquim da Distintivo Blue. Cheia de ironia e irreverência, a banda não abandona, mas ultrapassa as temáticas tradicionais do estilo, com seus contos do cotidiano e crônicas disfarçados de letra. Distintivo é uma das maiores representantes do blues nacional fora do eixo sudeste. E já que a região de Conquista é produtora de café, que tal um? Com blues! Café com blues fica mais forte. É muito bom... embola “música americana” com os dizeres, os cantares e os viveres do sertão e dá outras providências no sentido de mostrar o quanto culturas diferentes são perfeitamente integráveis. Só que nem tudo é azul e sempre tem alguém pedindo um rock. Para atender a esses pedidos, além de outras tantas, a cidade conta com os performáticos, alegres e contagiantes Ladrões De Vinil que foram libertados das grades da rotina e vivem por aí com seus uniformes listrados, fazendo arruaça de responsa, sem deixar ninguém parado.


Além do blues e do rock, um estilo musical, também de origem norte-americana, inusitadamente despontou no cenário local: o folk. E o responsável por essa muito agradável surpresa é Diego Oliveira que, por seu projeto Benjamin, espécie de pseudônimo, ou personagem criado talvez para separar o artista dos demais profissionais que ele é (produtor, arranjador e multi-instrumentista), se tornou um dos poucos ícones do gênero no país, com sua elegante voz acompanhada pelo violão impecável em canções de assinatura inconfundível. Benjamin faz da simplicidade um complexo poético incrivelmente leve e, ao mesmo tempo, denso.


Só que Vitória da Conquista é Bahia e é Nordeste. E para se fazer jus a isto, não poderia faltar o velho e bom forró. O forró tradicional tem sua sobrevivência garantida com as bandas Amantes do Forró e Fulor do Cangaço. Ambas não abrem mão de cantar o povo nordestino, sobretudo do sertão, com a autenticidade que só o xote, o baião e o arrasta-pé são capazes de conferir a esse ritmo eternizado pelo mestre Gonzagão. Ambas pautam suas apresentações em trabalhos autorais, e em clássicos do Rei do Baião e outros representantes do “pé-de-serra”. A única diferença é que a Fulor do Cangaço é basicamente formada por mulheres e mostra que o encanto feminino não está só no perfume e nos pequenos detalhes. Mas além desses, ainda tem o forrozeiro, poeta e repentista Onildo Barbosa que, chegado da Paraíba, há muito já é cidadão dessa terra e nela plantou um descendente que vem se destacando como exímio sanfoneiro: Rony Barbosa.


Como já foi dito no início, há outros artistas grandiosos, tão bons quanto os já mencionados, no entanto seria preciso maior conhecimento da minha parte para dizer com riqueza de detalhes sobre a liberdade rítmica e a diversidade melódica de um Papalo Monteiro; sobre o humor, a sátira, os belíssimos dedilhados e outros sonhos enxugados nos varais de um Walter Lajes. Teria que me debruçar sobre um ensaio imenso para pormenorizar a competência, a disciplina e o ecletismo embutidos na experiência “transmusical” de um Cao Alves; a sutileza com que um Gutemba veste poemas; a simplicidade orgânica de um Dorinho Chaves; a luz mais que intensa soprada na voz divina e adorável de uma Ana Barroso, uma Kell Lira, uma Tereza Raquel, ou uma Lys Alexandrina; a essencial naturalidade de um Janio Arapiranga; a abertura do coração de um Evandro Correia ao tempo e ao amor; a sofisticação técnica de um Bazé, um Cleriston Cavalcante e um Luciano PP e as peculiaridades indescritíveis de outros tantos...


Não haveria espaço no meu tempo, pois é tudo isso e muito mais. Sim, porque não resta dúvida de que Orfeu andou dedilhando sua lira pelas bandas do alto sertão da Bahia, de maneira que harmonia, melodia e ritmo parecem ter se tornado componentes da atmosfera local. E é muita gente que inspira com força esse ar de Vitória da Conquista. A quantidade e qualidade de cantores, compositores, intérpretes, bandas e instrumentistas, naturais dessa cidade, ou que para ela foram e são atraídos é algo incomum de se encontrar. E certamente essa característica fez com que se fomentasse a criação de um conservatório municipal de música, uma filarmônica e uma orquestra sinfônica que também oferecem cursos gratuitos, além de um número considerável de escolas privadas de música e professores particulares. Talvez por isso haja tantos eventos gratuitos e tantos bares e espaços oferecendo boa música na cidade onde, não por acaso, o atual prefeito, que é o que tem maior tempo no cargo, também é compositor.


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