Por Jorge Furtado**

Em meu último filme (Saneamento Básico) tem uma cena que termina com uma frase de Dostoiévski na qual eu acredito profundamente: “a beleza salvará o mundo”. Trata-se de um strip-tease de Silene (Camila Pitanga), intercalado com imagens da exuberante natureza da serra gaúcha, regatos, folhas, flores, pedras, musgos, tudo o que há de mais bonito no mundo. Não demorei muito tempo para escolher a trilha da cena, o som de maior beleza possível: a voz de Billie Holiday.

Billie teve uma vida de cão, e não dos mais sortudos. Violentada aos dez anos e internada numa casa de correção, aos 12 era faxineira dos mais sórdidos puteiros de Baltimore. Prostituta aos 14, alcóolatra e viciada em heroína, apanhou e foi roubada por seus sucessivos maridos. Sofreu o que pode até sua morte, aos 44 anos.

Em troca de tanta dor, deixou ao mundo uma obra de raríssima beleza. Billie Holiday é uma força da natureza, uma das maiores artistas da história da humanidade. Sua voz é um instrumento musical capaz de contracenar com o trompete de Louis Armstrong, os pianos de Duke Ellington e Count Basie, o sax de Lester Young e os clarinetes de Benny Goodman e Artie Shaw. Seu ritmo é único e seu timbre, inconfundível. Era também boa compositora, mas nem precisava. Sua interpretação tem, ao mesmo tempo, a leveza de um suspiro e a precisão de um punhal. Corta fundo e assopra, mata e cura. Melhor que o silêncio, só Billie Holiday.


*Este texto foi publicado pela primeira vez em junho de 2010, no blog da L&PM Editores , logo após o lançamento de Billie Holiday na Série Biografias.

**Jorge Furtado é diretor, roteirista e escritor. Pela L&PM publicou Meu tio matou um cara.

Fonte: L&PM